Reparei hoje que já saiu, no último número da Revista de História da Faculdade de Letras, uma recensão da minha autoria acerca da evolução histórica da Desigualdade Regional na Península Ibérica. Como o texto está disponível on-line - aliás basta clicar nas duas últimas hiperligações -, reproduzo aqui o original, descontadas as referências bibliográficas para não tornar isto ainda mais chato (mas o texto publicado na revista devia tê-las. Não tem porque quem o editou fez o favor de as apagar, que incompetência!). Espero que gostem.
Desigualdade regional na Península Ibérica. Ensaio Bibliográfico.
Artigos discutidos neste ensaio:
Maria Eugénia Mata, “As bees attracted to honey Transport and job mobility in Portugal, 1890–1950”, Journal of Transport History (vol. 29, nº2, 2008),173-192.Luís Espinha da Silveira; Daniel Alves; Nuno Miguel Lima; Josep Puig-Farré, “Caminho de ferro, População e Desigualdades Territoriais em Portugal, 1801-1930”, Ler História (nº 61, 2011), 7-37.
Marc Badia-Miró; Jordi Guilera; Pedro Lains, “Regional Incomes in Portugal: Industrialisation, Integration and Inequality, 1890-1980”, Revista de Historia Económica / Journal of Iberian and Latin American Economic History (vol. 30, nº2, 2012), 225-244.
Daniel Tirado; Marc Badia-Miró, “Economic integration and regional inequality in Iberia (1900-2000): a geographical approach”, Working Papers in Economic History, Universidad Carlos III, Departamento de Historia Económica e Instituciones (nº 12-03, 2012), 1-29 (disponível em http://e-archivo.uc3m.es/bitstream/10016/13688/1/wp_12-03.pdf - consultado em 30/11/2012).
A Economia está profundamente marcada por desigualdades. São disso exemplos, quer a desigualdade económica social que atinge indivíduos que partilham um espaço comum, quer a desigualdade económica espacial cujas consequências se materializam na existência de diferentes espaços geográficos com economias em distintos estados de desenvolvimento. Compreende-se então que um dos principais temas da História Económica seja precisamente a aferição dos motivos por detrás destas desigualdades e, ao mesmo tempo, a demonstração dos possíveis caminhos que estiveram à disposição de cada economia, sobretudo aqueles que poderiam ter levado a que as economias menos desenvolvidas tivessem obtido um maior sucesso. É por esta razão que se continuam a analisar constantemente as causas pelas quais algumas partes do mundo, alguns países ou, inclusivamente, algumas regiões se desenvolveram e outras permaneceram mais atrasadas.
A Península Ibérica, através da análise das economias dos seus dois estados, isto é, Portugal e Espanha, conta com diversos estudos não só sobre os períodos da sua divergência em relação às economias mais desenvolvidas, mas também sobre os de convergência. No entanto, até há bem pouco tempo escasseavam os trabalhos de âmbito mais regional, ou seja, a investigação da desigualdade regional dentro de cada uma destas economias e, sobretudo, a explicação das suas causas.
Ora, os quatro artigos que aqui se discutem vêm precisamente colmatar esta lacuna, já que cada um deles incide na temática da desigualdade regional, seja analisando desigualdades demográficas, seja determinando a distribuição espacial do setor industrial ou aferindo a desigualdade de rendimento per capita, medido, em ambos os casos, através do PIB per capita.
O assunto torna-se especialmente pertinente tanto pela sua relativa originalidade no campo da Historiografia Económica nacional e ibérica, como porque à desigualdade económica regional da Península Ibérica – e de outros países Mediterrânicos – está também associado um processo de desertificação física e humana das regiões do interior, que tem recebido bastante atenção por parte da “opinião pública”. Por outro lado, tem sido reconhecida a fulcral importância da análise histórica no desenvolvimento económico regional.
Todos estes trabalhos acabam por ter âmbitos cronológicos relativamente coincidentes, que se situam nos últimos cento e cinquenta a duzentos anos, com o início da industrialização do espaço português, estendendo-se, já com um âmbito mais ibérico, até ao final do século XX9. Neste aspeto, apenas Silveira recua ao início do século XIX como forma de observar as dinâmicas populacionais antes da abertura da primeira ferrovia portuguesa.
Independentemente do seu sucesso ou insucesso relativo, que aliás, como seria de esperar, variou consoante as épocas, foi precisamente durante este último século e meio que, quer a economia portuguesa, quer a espanhola, conheceram o impacto do “crescimento económico moderno”. Ou seja, para além das implicações deste nas estruturas demográficas, na produtividade e no rendimento per capita, entre outros aspetos, as economias portuguesa e espanhola, embora tardiamente pelos padrões europeus, conheceram uma transição estrutural no sentido da sua industrialização e urbanização. Foi também neste período que se foram formando os espaços económicos nacionais, com a integração dos diversos mercados regionais num único mercado nacional, bem como se assistiu à inclusão das economias ibéricas no movimento da “primeira globalização”. Assim, as diversas regiões passaram a estar muito mais dependentes e interligadas entre si, mas também com os espaços económicos internacionais, não obstante o forte protecionismo que ambas as economias conheceram, à semelhança das demais economias “ocidentais”, sobretudo entre as duas guerras mundiais e estendendo-se, na Península Ibérica, aos anos de 1950. Tratou-se, portanto, de um período sujeito a fortes transformações económicas cujas repercussões regionais estavam, em grande medida, até agora, por avaliar.
Antes de uma análise mais detalhada, é obrigatório referir que os quatro trabalhos apresentam, de uma forma geral, uma concordância de conclusões. Assim, a distribuição desigual das populações era algo, aparentemente, já presente em meados do século XIX. Contudo, devido ao processo de crescente integração dos mercados nacionais, onde o efeito causal do desenvolvimento de uma rede de transportes terrestres foi assinalável, existiu uma tendência de agravamento da desigualdade, não só das dinâmicas populacionais, mas também da localização da indústria, do produto industrial e do produto económico no sentido da litoralização da Península Ibérica. Esta tendência apenas se atenuou de forma ligeira na primeira fase da integração total das economias ibéricas no espaço europeu.
Outro aspeto comum a assinalar é o paralelismo com que estes processos se desenvolveram em Espanha e em Portugal, não tendo as fronteiras políticas desempenhado um papel relevante neste processo, pelo que atualmente se assiste a um padrão comum de desigualdade: as regiões do interior e, sobretudo, as regiões do interior sul são as mais pobres e despovoadas, enquanto é nas regiões costeiras, com a exceção de Madrid, que se concentra o grosso da atividade económica e da concentração das populações. Aliás, as regiões portuguesas e espanholas desta “periferia peninsular” partilham, frequentemente, o espaço fronteiriço entre si. É o caso, por exemplo, do Alentejo e da Beira Baixa com a Extremadura e a Andaluzia, ou de Trás-os-Montes com Castela e Leão. Parece então que, tal como assinalou Krugman, as grandes regiões têm um significado económico maior do que os estados-nação, moldados por fronteiras políticas.
Para além de conclusões semelhantes, os diversos autores convergem, de uma forma geral, em justificações análogas, que se encaixam nos modelos desenvolvidos por Krugman sobre economia geográfica, como aliás os próprios autores reconhecem. A formação de economias de aglomeração nas regiões litorais através de um forte padrão de especialização regional – parece ter existido, nas regiões do litoral, uma especialização nos setores industriais mais produtivos –, potenciadas sobretudo pela queda dos custos de transporte, parece ser a chave deste problema. Estas economias de aglomeração situadas no litoral ibérico em torno de um conjunto reduzido de zonas urbanas, tornaram aquelas regiões ainda mais produtivas e geradoras de maiores rendimentos e, consequentemente, mais atrativas para a fixação de indústrias, bem como de populações em busca de melhores oportunidades de emprego e de melhores condições económicas de bem-estar. Simultaneamente, com a aglomeração de indústrias e mão-de-obra nessas regiões, formou-se um círculo virtuoso (ou vicioso?) cujas consequências foram, precisamente, o aparecimento de grandes zonas urbanas rodeadas de áreas rurais que sofreram uma enorme migração das suas populações para as cidades. Esta ideia é aliás reforçada quando, no caso português, são analisadas as migrações internas, concluindo-se que os principais centros urbanos do litoral e, dentro destes, as cidades de Lisboa e Porto, concentraram a maioria das populações migrantes.
Embora abordando temáticas análogas e recorrendo, por vezes, aos mesmos métodos, existem algumas particularidades em cada um destes trabalhos que devem ser salientadas. Assim, se dois deles partem de problemas semelhantes – a análise da evolução do PIB per capita regional –, residindo a principal diferença na amplitude geográfica do objeto de estudo (o espaço português no primeiro caso e o conjunto peninsular no segundo), e utilizam essencialmente os mesmos métodos – a análise cliométrica a partir da construção de uma estimativa do PIB regional –, os outros artigos oferecem algumas diferenças mais substanciais. Desde logo, Eugénia Mata abraça um problema diferente, o impacto do desenvolvimento dos transportes na localização da indústria portuguesa, embora recorra também à análise cliométrica, neste caso através de uma base de dados com a distribuição do emprego industrial português.
Neste panorama, talvez o artigo de Silveira se apresente como o mais distinto relativamente ao método utilizado. Estes autores, cujo texto se situa no âmbito da História Espacial, recorrem a um Sistema de Informação Geográfica (SIG) para procurar aferir as repercussões do acesso ao caminho de ferro na evolução da população, das cidades e das migrações internas em Portugal continental, numa perspetiva regional. Ao que tudo indica, a ligação de uma base de dados ao SIG possibilitou que se ultrapassassem os problemas decorrentes da existência de descontinuidades históricas administrativas na reconstrução de unidades territoriais que assim se tornaram historicamente comparáveis. Este problema também se colocou a Tirado e Badia-Miró, quando estes procuraram transferir o PIB das atuais NUTS III portuguesas para os extintos distritos administrativos, tendo os autores simplesmente distribuído o PIB de cada NUTS III pelos seus municípios de acordo com a população destes para, posteriormente, o recolocarem no distrito em que cada um desses municípios se localizou. No entanto, este método, ao repartir o PIB regional exclusivamente de acordo com a respetiva população de cada município, acaba por implicitamente considerar que o PIB per capita de todos os municípios de uma NUTS III seria igual, o que pode ser considerado um pouco incongruente num estudo que assinala precisamente a existência de diferenças de PIB per capita em espaços geográficos relativamente reduzidos.
Nos dois artigos com uma cronologia mais recuada, que abrangem grande parte ou a totalidade do século XIX e terminam em meados do século XX, encontramos uma análise mais pormenorizada do impacto que o desenvolvimento dos transportes e, especialmente, que os caminhos de ferro terão tido na dinâmica populacional e na localização industrial portuguesa. Embora a construção de uma rede ferroviária tenha, de uma forma geral, contribuído para o desenvolvimento populacional das freguesias e concelhos que beneficiaram com esta acessibilidade, este padrão não se aplicou a todos casos. Justamente em algumas regiões do interior, especialmente no Norte de Portugal, o efeito foi precisamente o contrário. Ou seja, a maior mobilidade permitiu que as populações migrassem para os principais centros económicos portugueses onde, como demonstra Eugénia Mata, podiam obter com maior facilidade emprego nos setores mais produtivos da economia portuguesa, como era o caso do sector industrial. Por outro lado, a construção da rede ferroviária obedeceu, com algumas exceções por motivos de ligação internacional ao país vizinho, à lógica populacional pré-existente, já marcada por uma certa dicotomia interior/litoral, tendo contribuído para o seu agravamento. Existiu então, com o desenvolvimento dos transportes, um processo de transferência de populações do interior para o litoral, tendo-se se deslocalizado grande parte da indústria no mesmo sentido.
Este último fator torna-se particularmente significativo se atendermos ao facto que a localização industrial é um dos parâmetros mais importantes para o desenvolvimento económico e responsável pela fixação de populações, devido à especial capacidade dinamizadora do conjunto da economia que supõe uma atividade deste tipo. É, portanto, bastante comum identificar-se industrialização com desenvolvimento económico e carência de indústria com atraso. Assim, com poucas exceções, não existem países ou regiões desenvolvidos que não se destaquem pela dimensão e produtividade do seu setor industrial.
Os restantes dois artigos completam este quadro em termos cronológicos, já que a sua análise se situa essencialmente no século XX, estendendo-se até ao final da centúria de novecentos. Completam também o quadro da desigualdade, reforçando as ideias anteriores, ou seja, o aumento da desigualdade regional, agora medida, em ambos os casos, em termos do PIB per capita de cada região. Contudo, este crescimento da desigualdade de rendimento, ao longo do século XX, não foi constante, tendo conhecido um ligeiro abrandamento durante a consolidação do espaço económico nacional e o início da abertura europeia, nas décadas de 1970 e 1980, devido principalmente à expansão do setor dos serviços, pelo menos na economia portuguesa. Assim, esta evolução pode ser representada graficamente como um “U” invertido.
Por último, é assinalado que este padrão de desigualdade, crescente numa primeira fase e que posteriormente se atenua, não é um fenómeno estritamente ibérico, pois foi identificado para várias regiões europeias. Existiu, todavia, um hiato temporal entre a desigualdade regional ibérica e a desigualdade regional europeia. Este é explicado, para o caso português, com o intervalo relativamente coincidente entre o surgimento na economia portuguesa das causas já referenciadas, e que fomentaram esta evolução, e o mesmo processo nas economias europeias.
Embora todos estes estudos tenham apontado para causas e consequências semelhantes, num exemplo de grande concordância académica, este assunto está, naturalmente, muito longe de se esgotar. Aliás, um dos artigos termina precisamente com uma enumeração das questões pertinentes que agora se levantam perante o cenário descrito. Desde logo, é necessário um estudo mais aprofundado que permita compreender qual o peso relativo das dotações de cada região, sobretudo em termos de capital físico e humano disponível, e dos já descritos efeitos que os mercados tiveram na formação de todas estas desigualdades.
Contudo, na minha opinião, seria também interessante cruzar as diversas políticas económicas seguidas em Portugal e Espanha, ao longo destes quase duzentos anos, com os padrões, aparentemente bem vincados, de desigualdade regional. Concretamente, perante a ausência de assimetrias no padrão de desigualdade das economias regionais destes dois estados, parece ser bastante pertinente compreender se, em primeiro lugar, foram seguidas políticas económicas semelhantes com resultados também eles iguais ou se, por outro lado, a opção por políticas económicas divergentes acabou por ter consequências idênticas. Este exercício poderia levar a um maior conhecimento do papel da política económica no processo de litoralização ibérica e, sobretudo, permitir compreender se com uma política económica diferente teria sido (ou será) possível inverter esta situação (caso isso seja realmente desejável), ou se ela se apresenta como uma inevitabilidade do crescimento económico moderno, com a qual temos de lidar. Por outro lado, a existência, em Espanha, de uma região de interior com uma elevada densidade populacional e PIB per capita, Madrid – uma exceção que Badia-Miró, Guilera e Lains talvez pudessem ter explorado mais exaustivamente –, sugere que determinadas políticas podem ter como consequência a criação de regiões economicamente desenvolvidas longe do litoral, bem como as menores desigualdades regionais verificadas em outros países europeus como, por exemplo, França.
Esta problemática é brevemente abordada por Miró, Guilera e Lains, quando procuram compreender, de uma forma mais minuciosa, as causas da desigualdade. Ora, segundo aqueles autores, esta deveu-se, em Portugal, à especialização de determinadas regiões em indústrias e/ou setores menos produtivos ou, por outro lado, a reduzidos níveis de produtividade em regiões cujas especializações produtivas coincidiram com os setores de maior sucesso económico. Assim, as soluções apontadas são relativamente óbvias, isto é, a promoção de uma alteração estrutural no primeiro caso, e o aumento da produtividade no segundo.
Sabe-se, porém, que as políticas relativas ao comércio internacional foram cronologicamente semelhantes nos dois estados, desde as últimas décadas do século XIX – protecionismo até finais dos anos de 1950, seguido de uma maior abertura até à atualidade –, sem que aparentemente estas mudanças tenham alterado a evolução dos padrões de desigualdade. Sobre este aspeto, é argumentado que a abertura aos mercados internacionais favorece a desigualdade regional nos primeiros estádios da industrialização, a que se segue uma quebra na desigualdade devido ao crescimento dos custos de congestionamento. No entanto, a desigualdade continuou a crescer mesmo nos períodos de maior autarcia, não se aludindo se teoricamente tal seria ou não expectável. O que significa que o impacto da desintegração económica internacional talvez fosse merecedor de um maior aprofundamento. Acresce ainda que existe, neste ponto, alguma divergência sobre a forma como a desigualdade evoluiu nas décadas de 1940 e 1950, marcadas pela autarcia na Península Ibérica, já que um dos artigos aponta para o seu decréscimo, enquanto outro refere o processo do seu crescimento contínuo.
Por último, existindo unanimidade na quebra da desigualdade regional nas últimas duas décadas do século XX, seria pertinente tentar compreender porque é que, ainda assim, nas regiões do interior o processo de desertificação humana, em termos relativos e absolutos, manteve a sua marcha até agora imparável.
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