“As grandes tiragens são compradas
pelos grandes industriais e fabricantes, e as pequenas por um aluvião de
compradores algarvios, que de muitas parcelas adquiridas em várias herdades
chegam a dispor de porções importantes”. (Picão,
1903)
Foi desta forma
que José da Silva Picão descreveu, em 1903, na clássica obra «Através dos Campos: usos e costumes
agrícolas alentejanos», o mercado florestal de cortiça do Alentejo
oitocentista. De facto, a afirmação do autor elvense, ainda que não sustentada
empiricamente por qualquer estudo de carácter quantitativo, parece comprovar-se
nos municípios que tenho vindo a estudar. Era assim no concelho de Portalegre,
onde os grandes industriais, representados quase em exclusivo pela firma de
origem britânica Robinson Cork Grewers,
partilhavam a liderança da aquisição de cortiça no «mato» com inúmeros pequenos
industriais algarvios.
Gráfico 1
– Distribuição percentual da quantidade de cortiça adquirida no concelho de
Portalegre (1848-1914)
O mesmo se
verificava no concelho de Ponte de Sor, onde, desta feita a Robinson era substituída, como a
principal «representante» das grandes multinacionais corticeiras, pela firma Henry Bucknall & Sons, igualmente,
como o nome denúncia, de origem britânica.
Gráfico 2
– Distribuição percentual da quantidade de cortiça adquirida no concelho de
Ponte de Sor (1857-1909)
Resta esclarecer a forma como foram obtidos estes dados,
até porque, desta forma, o leitor compreenderá uma das principais
particularidades do mercado florestal de cortiça no século XIX. A aquisição de
matéria-prima, ao contrário do que ocorre atualmente, realizava-se essencialmente
através da celebração de contratos de arrendamento de cortiça na árvore. Esta
característica estendia-se não só a todo o Sul de Portugal, como também era
bastante frequente nas principais regiões corticeiras espanholas: Extremadura e
Andaluzia. Consequentemente, quer se tratassem de grandes ou pequenos
industriais; quer fossem de origem portuguesa, espanhola, britânica ou
norte-americana, todos os compradores celebraram milhares de contratos de
arrendamento de cortiça nos diversos cartórios notariais dos principais municípios
ibéricos produtores de cortiça.
Assim, esta documentação contém bastante informação sobre
o funcionamento do mercado florestal de cortiça, permitindo, desde logo, análises
relativamente simples, diretas, mas pertinentes como a identificação dos
principais compradores de cortiça. Por outro lado, também questões complexas
podem ser abordadas: a aferição da eficiência económica deste tipo de contratos,
a identificação de determinadas estratégias empresariais, entre outras. Na
gestão empresarial destacam-se, por exemplo, a integração vertical ou a constituição de redes comerciais,
cujas repercussões se estendem à formação do preço da cortiça e aos fatores de
localização industrial.
As propriedades montargilenses não constituíram exceção ao
cenário já descrito. De forma alternada, foram realizados, por parte de
industriais algarvios, centenas de arrendamentos de montantes relativamente
modestos e, em simultâneo, grandes contratos quase sempre assinados em nome da Henry Bucknall & Sons. Assim, por
exemplo, em 1857, na Herdade da Amieira, José Brito da Mana, natural de São
Brás de Alportel, adquiriu o direito às tiragens de cortiça daquela propriedade
por um período de 9 anos, mediante o pagamento de 208 mil réis ao seu
proprietário, José Maria Ferreira. Posteriormente, em 1877, a Henry Bucknall & Sons, através do
seu representante local, Manuel Tomás, residente em Nisa, explorou, por um
período de 8 anos, a cortiça produzida na Herdade de S. Martinho, cabendo ao
seu proprietário, António Rosado, a quantia de 2 contos (milhões) de réis. Este
último contrato, ainda que o montante se tenha cifrado numa quase decuplicação
do exemplo anterior, fica muito aquém dos maiores contratos celebrados pela
multinacional britânica no concelho de Ponte de Sor.
Para o demonstrar basta referir que Francisco Vaz
Monteiro arrendou, em 1894, por um período de 12 anos, a cortiça de mais de uma
dezena das suas propriedades, que se estendiam desde Avis, passando por
Montargil, e até Ponte de Sor, pela quantia de 43 milhões de réis, o equivalente
ao salário anual de mais de 450 trabalhadores agrícolas, visto que, nesse ano,
o salário médio diário daqueles rondaria os 340 réis. Este contrato
apresenta-se como um exemplo bastante peculiar, devido aos constrangimentos que
Vaz Monteiro, ciente da fragilidade dos sobreiros que acabara de arrendar,
conseguiu impor à Henry Bucknall &
Sons ao nível das melhores práticas suberícolas da época. Mas essa é uma
história que ficará, para já, por contar.
P.S. - Texto publicado na edição de Janeiro do periódico local Arauto de Montargil.
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