segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Entre Ingleses e Algarvios: a compra de cortiça no «mato montargilense» oitocentista

“As grandes tiragens são compradas pelos grandes industriais e fabricantes, e as pequenas por um aluvião de compradores algarvios, que de muitas parcelas adquiridas em várias herdades chegam a dispor de porções importantes”. (Picão, 1903)
           
            Foi desta forma que José da Silva Picão descreveu, em 1903, na clássica obra «Através dos Campos: usos e costumes agrícolas alentejanos», o mercado florestal de cortiça do Alentejo oitocentista. De facto, a afirmação do autor elvense, ainda que não sustentada empiricamente por qualquer estudo de carácter quantitativo, parece comprovar-se nos municípios que tenho vindo a estudar. Era assim no concelho de Portalegre, onde os grandes industriais, representados quase em exclusivo pela firma de origem britânica Robinson Cork Grewers, partilhavam a liderança da aquisição de cortiça no «mato» com inúmeros pequenos industriais algarvios.

Gráfico 1 – Distribuição percentual da quantidade de cortiça adquirida no concelho de Portalegre (1848-1914)



            O mesmo se verificava no concelho de Ponte de Sor, onde, desta feita a Robinson era substituída, como a principal «representante» das grandes multinacionais corticeiras, pela firma Henry Bucknall & Sons, igualmente, como o nome denúncia, de origem britânica.

Gráfico 2 – Distribuição percentual da quantidade de cortiça adquirida no concelho de Ponte de Sor (1857-1909)



            Resta esclarecer a forma como foram obtidos estes dados, até porque, desta forma, o leitor compreenderá uma das principais particularidades do mercado florestal de cortiça no século XIX. A aquisição de matéria-prima, ao contrário do que ocorre atualmente, realizava-se essencialmente através da celebração de contratos de arrendamento de cortiça na árvore. Esta característica estendia-se não só a todo o Sul de Portugal, como também era bastante frequente nas principais regiões corticeiras espanholas: Extremadura e Andaluzia. Consequentemente, quer se tratassem de grandes ou pequenos industriais; quer fossem de origem portuguesa, espanhola, britânica ou norte-americana, todos os compradores celebraram milhares de contratos de arrendamento de cortiça nos diversos cartórios notariais dos principais municípios ibéricos produtores de cortiça.
            Assim, esta documentação contém bastante informação sobre o funcionamento do mercado florestal de cortiça, permitindo, desde logo, análises relativamente simples, diretas, mas pertinentes como a identificação dos principais compradores de cortiça. Por outro lado, também questões complexas podem ser abordadas: a aferição da eficiência económica deste tipo de contratos, a identificação de determinadas estratégias empresariais, entre outras. Na gestão empresarial destacam-se, por exemplo, a integração vertical ou a constituição de redes comerciais, cujas repercussões se estendem à formação do preço da cortiça e aos fatores de localização industrial.


Figura 1 - Tiradores de cortiça (Séc. XIX)


Fonte: Menéres, Clemente - 40 annos de Traz-Os-Montes.

As propriedades montargilenses não constituíram exceção ao cenário já descrito. De forma alternada, foram realizados, por parte de industriais algarvios, centenas de arrendamentos de montantes relativamente modestos e, em simultâneo, grandes contratos quase sempre assinados em nome da Henry Bucknall & Sons. Assim, por exemplo, em 1857, na Herdade da Amieira, José Brito da Mana, natural de São Brás de Alportel, adquiriu o direito às tiragens de cortiça daquela propriedade por um período de 9 anos, mediante o pagamento de 208 mil réis ao seu proprietário, José Maria Ferreira. Posteriormente, em 1877, a Henry Bucknall & Sons, através do seu representante local, Manuel Tomás, residente em Nisa, explorou, por um período de 8 anos, a cortiça produzida na Herdade de S. Martinho, cabendo ao seu proprietário, António Rosado, a quantia de 2 contos (milhões) de réis. Este último contrato, ainda que o montante se tenha cifrado numa quase decuplicação do exemplo anterior, fica muito aquém dos maiores contratos celebrados pela multinacional britânica no concelho de Ponte de Sor.

            Para o demonstrar basta referir que Francisco Vaz Monteiro arrendou, em 1894, por um período de 12 anos, a cortiça de mais de uma dezena das suas propriedades, que se estendiam desde Avis, passando por Montargil, e até Ponte de Sor, pela quantia de 43 milhões de réis, o equivalente ao salário anual de mais de 450 trabalhadores agrícolas, visto que, nesse ano, o salário médio diário daqueles rondaria os 340 réis. Este contrato apresenta-se como um exemplo bastante peculiar, devido aos constrangimentos que Vaz Monteiro, ciente da fragilidade dos sobreiros que acabara de arrendar, conseguiu impor à Henry Bucknall & Sons ao nível das melhores práticas suberícolas da época. Mas essa é uma história que ficará, para já, por contar.    

P.S. - Texto publicado na edição de Janeiro do periódico local Arauto de Montargil.

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